O silêncio dos inocentes - Garcia Pereira


arrogância da Segurança Social e da Caixa Geral de Aposentações

Um autêntico escândalo destes já não seria suficiente para que duramente nos indignássemos e assim impuséssemos que tudo tivesse que mudar nesta matéria?



No passado dia 28 de Junho, José António Rosário Godinho, jardineiro da Câmara Municipal de Caminha, com 56 anos de idade, faleceu, ao fim de seis anos de doença, vítima de um cancro linfático.

Há cerca de 2 anos, e perante a completa comprovação da gravidade da doença que dramaticamente o afectava, a ADSE enviara para a CGA – Caixa Geral de Aposentações o processo daquele trabalhador camarário com vista à sua aposentação definitiva.

Durante todo este tempo, esse processo arrastou-se sem fim à vista. Porém, há (apenas) duas semanas atrás, veio finalmente a decisão dos burocratas da CGA, alegadamente baseada nos doutos exames e pareceres dos seus peritos médicos – o trabalhador foi considerado "apto para o serviço" e viu, por isso, ser-lhe negada a aposentação!

Menos de uma semana depois, o mesmo trabalhador, assim provocatoriamente considerado apto para trabalhar, falecia no Instituto Português de Oncologia do Porto, vítima da doença fatal que desde 2012 o atacava e consumia.

Um autêntico escândalo destes já não era suficiente para que duramente nos indignássemos e assim impuséssemos que tudo tivesse que mudar nesta matéria?

Pelos vistos, não!...

Uma semana depois, torna-se conhecida outra história igualmente arrepiante, esta da cidadã Maria Filomena, uma senhora de 55 anos, do regime da Segurança Social e também ela doente oncológica.

Conforme a própria contou, devido a um cancro agressivo, teve de, há cerca de 3 meses atrás, ser submetida a uma intervenção cirúrgica, retirar uma mama e proceder a uma raspagem do útero. Com toda esta situação de grave doença não terá actualizado a sua morada na Segurança Social, a qual lhe enviou para a residência anterior a convocatória para uma Junta Médica de Verificação de Incapacidade.

Como, pela razão já indicada, a senhora não recebeu a referida convocatória e assim não compareceu à dita Junta Médica, a Segurança Social cortou-lhe de imediato o subsídio de doença, que ela, entretanto, chegara a receber durante escassos dois meses. Nessa altura, perante a suspensão do pagamento do subsídio, a trabalhadora dirigiu-se à Segurança Social de Portimão e aí, tendo sido informada do que se passara, actualizou a morada e logo apresentou não só os justificativos médicos (as "baixas médicas" ou certificados de incapacidade temporária, 5 no total), como também todo o historial e toda a documentação clínica comprovativa da real situação de doença, pedindo que, uma vez assim perfeitamente demonstrada tal situação, lhe fosse marcada uma nova Junta Médica.

Mas, implacável e do alto da sua indiferença e arrogância, a Segurança Social rejeitou liminarmente essa possibilidade e exigiu que a senhora trabalhasse durante 6 meses para poder voltar a ter direito ao subsídio de doença, aliás, no valor “astronómico” de 320€ mensais.

Sucede que a trabalhadora – que, além de cancro, padece igualmente de diversas outras doenças, designadamente da tiroide, e ainda de uma hérnia no estômago a que terá também de ser operada – não está minimamente em condições de regressar ao trabalho, como, aliás, a própria médica de família já a advertiu.

Mas a Segurança Social – a mesma Segurança Social que, ao longo dos últimos anos, deixou acumular 12.579 milhões de euros de dívidas patronais, 7.515 milhões de euros dos quais já desistiu de receber por os considerar “incobráveis” – encarniça-se na sua posição contra esta mulher do Povo, não cede, recusa-lhe a marcação de uma segunda Junta Médica e agora, e ainda por cima, vem exigir-lhe, sob a ameaça de execução e penhora, 180,69€ de subsídio de doença que considera ter sido indevidamente pago entre 21 de Março e 4 de Abril (mês em que, aliás, ela já nada recebeu).

Deste modo, um serviço do Estado dito de segurança social e de solidariedade (como refere o artº 63º da Constituição) considera apto para o serviço e manda trabalhar um funcionário canceroso e moribundo, que falece escassos dias depois. Um outro serviço, igualmente dito de segurança e solidariedade social, aproveita-se de um pretexto meramente burocrático para negar o apoio na doença a quem já fez descontos durante mais de 3 décadas e, tão maldosa quanto hipocritamente, manda trabalhar alguém que esse mesmo serviço sabe perfeitamente que, devido a doença oncológica, está impossibilitado de o fazer, condenando-o assim à miséria ainda maior e à fome.

E o que diz a tutela governamental destes autênticos monstros odiosos em que estão transformadas a Caixa Geral de Aposentações e a Segurança Social, ou seja, o que dizem os incontornáveis ministros Centeno e Vieira da Silva e os seus Ministério? Dizem esta autêntica e provocatória preciosidade, que seria absolutamente risível se, face às circunstâncias, não fosse de uma gravidade extrema, para não dizer repugnante: a análise, feita pelas Juntas Médicas de Verificação das incapacidades para o trabalho, baseia-se na informação dos relatórios médicos que acompanham o requerente de pensão de invalidez (ou do subsídio de doença)!?

Lastimavelmente, e como se vai sabendo cada vez mais, este acinte e esta arrogância dos serviços da CGA e da Segurança Social, e em particular das respectivas Juntas Médicas, estão muito longe de serem meramente pontuais.

A própria Provedora de Justiça, a Professora Maria Lúcia Amaral, já teve oportunidade, em entrevista recente, de reconhecer publicamente que aquelas entidades são mesmo dos serviços públicos que pior funcionam e mais reclamações dos cidadãos suscitam.

Mas a verdade é que elas, mais do que isso, constituem hoje um dos piores e mais paradigmáticos exemplos do que verdadeiramente são os tão proclamados "Estados de direito" e "Estado social" em que nos pretendem convencer que vivemos.

De tão injustas e ilegais decisões como as acima referidas cabe, teoricamente, recurso para os Tribunais Administrativos, mas, por exemplo, o de Lisboa está a levar 10 anos, e até mais, para, só ao nível da primeira instância, proferir uma sentença de anulação de uma barbaridade destas. O mesmo é dizer que estas ficam impunes e podem ser indefinidamente repetidas como, de facto, o têm sido. Até porque, quem está velho, ou doente ou ambas as coisas, não tem nem disponibilidade de espírito, nem capacidade financeira, nem tempo para exercer esse outro direito, tão importante, mas tão fora do seu alcance, como é o do acesso aos Tribunais para defesa dos seus direitos e dos seus legítimos interesses.

Praticamente ninguém fala da Justiça Administrativa porque nela não há, normalmente, casos ditos "mediáticos" nem sangue a escorrer pelas calçadas que permitam ganhar audiências e encher telejornais. Mas são precisamente os Tribunais Administrativos os responsáveis – desde logo, pela sua inacção – pela inutilização de muitos dos direitos mais básicos dos cidadãos. A começar pelo direito à protecção na doença, na velhice ou na invalidez e pelo direito à pensão de aposentação ou reforma quando a idade, a doença ou o acidente já não permitem trabalhar mais. Passando, muitas vezes, pelo mero direito à informação de como se encontra o respectivo processo de atribuição de subsídio ou de pensão ou de quais as decisões que nele já foram proferidas.

E o Ministério Público – o tal sempre tão rápido e tão solícito a proclamar o seu alegado empenho no combate à criminalidade mais poderosa... – pura e simplesmente não mexe uma palha perante situações de tão patente quanto inaceitável abuso de poder, o qual é um crime público punido com pena de prisão até 3 anos nos termos do artº 382º do Código Penal, não havendo assim notícia de um único processo criminal instaurado com tal fundamento.

Casos como os acima descritos são conhecidos desde há largos anos e sucederam-se nos tempos da Tróica e do Governo Coelho/Portas, sob o pano ideológico de que os trabalhadores portugueses eram piegas e mandriões, não queriam trabalho e de que as baixas fraudulentas eram muitas pelo que havia que as combater, nem que fosse pela negação administrativa das baixas e das reformas e por o Estado mandar trabalhar os moribundos.

Mas como, mesmo com um outro governo, a natureza de classe desse Estado se manteve a mesma, o resultado é o que está à vista, ou seja, a manutenção do mesmo tipo de tratamento arrogante, vexatório e degradante contra quem é fraco e quem é pobre.

O jardineiro de Caminha sofreu e morreu, sendo considerado apto para o serviço. E a senhora de Portimão é agora condenada à fome por não poder trabalhar e por não lhe pagarem o subsídio de doença precisamente porque não trabalha.

São duas autênticas sentenças com pena de morte, supostamente abolida em Portugal há mais de 150 anos. Decretadas por verdadeiros carrascos e com a maior das crueldades e das indiferenças perante o sofrimento alheio. E pretensamente justificadas com os mais absurdos subterfúgios legais, desde a base até ao topo destas máquinas trituradoras que são os serviços públicos ditos de solidariedade, protecção e apoio aos cidadãos.

Mesmo que uns se calem e outros nos queiram distrair, perante esta barbárie é nosso direito e, mais do que isso, é nosso dever dizer: Não!

E essa postura de exigência e de responsabilidade deve começar pelo mais rigoroso inquérito – conduzido e levado a cabo por uma Comissão de cidadãos, e não obviamente pelos próprios – acerca desta forma de funcionamento dos serviços da Segurança Social e da Caixa Geral de Aposentações com o consequente apuramento de responsabilidades, civis, disciplinares e criminais e a adequada reparação ou compensação dos danos causados às vítimas.

O jardineiro morreu! E agora, perante tudo quanto se passou, ressoa mais forte ainda a frase de Martin Luther King: "O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons!"

António Garcia Pereira
(fonte: https://www.noticiasonline.eu/)

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