Brutal - Portugal visto por Lobo Antunes
Nação valente e imortal
Veja-se, por exemplo, o senhor Mexia, o senhor Dias Loureiro, coitados. Não há um único que não esteja na franja da miséria.António Lobo Antunes [Visão]
https://visao.sapo.pt/opiniao/a/antonio-lobo-antunes/2012-04-12-nacao-valente-e-imortalf658209/Agora sol na rua a fim de me melhorar a disposição, me reconciliar com a vida. Passa uma senhora de saco de compras: não estamos assim tão mal, ainda compramos coisas, que injusto tanta queixa, tanto lamento. Isto é internacional, meu caro, internacional e nós, estúpidos, culpamos logo os governos.
Quem nos dá este solzinho, quem é? E de graça. Eles a trabalharem para nós, a trabalharem, a trabalharem e a gente, mal agradecidos, protestamos. Deixam de ser ministros e a sua vida um horror, suportado em estóico silêncio. Veja-se, por exemplo, o senhor Mexia, o senhor Dias Loureiro, (...) coitados. Não há um único que não esteja na franja da miséria. Um único. Mais aqueles rapazes generosos, que, não sendo ministros, deram o litro pelo País e só por orgulho não estendem a mão à caridade.
O senhor Rui Pedro Soares, os senhores Penedos pai e filho, que isto da bondade às vezes é hereditário, dúzias deles.
Tenham o sentido da realidade, portugueses, sejam gratos, sejam honestos, reconheçam o que eles sofreram, o que sofrem. Uns sacrificados, uns Cristos, que pecado feio, a ingratidão. O senhor Vale e Azevedo, outro santo, bem o exprimiu em Londres. O senhor Carlos Cruz, outro santo, bem o explicou em livros.
E nós, por pura maldade, teimamos em não entender. Claro que há povos ainda piores do que o nosso: os islandeses, por exemplo, que se atrevem a meter os beneméritos em tribunal. Pelo menos nesse ponto, vá lá, sobra-nos um resto de humanidade, de respeito.
Um pozinho de consideração por almas eleitas, que Deus acolherá decerto, com especial ternura, na amplidão imensa do Seu seio. Já o estou a ver Senta-te aqui ao meu lado ó Loureiro Senta-te aqui ao meu lado ó Duarte Lima Senta-te aqui ao meu lado ó Azevedo que é o mínimo que se pode fazer por esses Padres Américos, pela nossa interminável lista de bem-aventurados, banqueiros, coitadinhos, gestores que o céu lhes dê saúde e boa sorte e demais penitentes de coração puro, espíritos de eleição, seguidores escrupulosos do Evangelho.
E com a bandeirinha nacional na lapela, os patriotas, e com a arraia miúda no coração. E melhoram-nos obrigando-nos a sacrifícios purificadores, aproximando-nos dos banquetes de bem-aventuranças da Eternidade.
As empresas fecham, os desempregados aumentam, os impostos crescem, penhoram casas, automóveis, o ar que respiramos e a maltosa incapaz de enxergar a capacidade purificadora destas medidas. Reformas ridículas, ordenados mínimos irrisórios, subsídios de cacaracá? Talvez. Mas passaremos sem dificuldade o buraco da agulha enquanto os Loureiros todos abdicam, por amor ao próximo, de uma Eternidade feliz. A transcendência deste acto dá-me vontade de ajoelhar à sua frente.
Dá-me vontade? Ajoelho à sua frente, indigno de lhes desapertar as correias dos sapatos. Vale e Azevedo para os Jerónimos, já! Loureiro para o Panteão, já! (...) Sócrates para a Torre de Belém, já! A Torre de Belém não, que é tão feia. Para a Batalha. Fora com o Soldado Desconhecido, o Gama, o Herculano, as criaturas de pacotilha com que os livros de História nos enganaram.
Que o Dia de Camões passe a chamar-se Dia de Armando Vara. Haja sentido das proporções, haja espírito de medida, haja respeito. Estátuas equestres para todos, veneração nacional. Esta mania tacanha de perseguir o senhor Oliveira e Costa: libertem-no. Esta pouca vergonha contra os poucos que estão presos, os quase nenhuns que estão presos por, como provou o senhor Vale e Azevedo, como provou o senhor Carlos Cruz, hedionda perseguição pessoal com fins inconfessáveis. Admitam-no.
E voltem a pôr o senhor Dias Loureiro no Conselho de Estado, de onde o obrigaram, por maldade e inveja, a sair. Quero o senhor Mexia no Terreiro do Paço, no lugar de D. José que, aliás, era um pateta. Quero outro mártir qualquer, tanto faz, no lugar do Marquês de Pombal, esse tirano.
Acabem com a pouca vergonha dos Sindicatos.
Acabem com as manifestações, as greves, os protestos, por favor deixem de pecar. Como pedia o doutor João das Regras, olhai, olhai bem, mas vêde. E tereis mais fominha e, em consequência, mais Paraíso. Agradeçam este solzinho.
Agradeçam a Linha Branca. Agradeçam a sopa e a peçazita de fruta do jantar.
Abaixo o Bem-Estar. Vocês falam em crise mas as actrizes das telenovelas continuam a aumentar o peito: onde é que está a crise, então? Não gostam de olhar aquelas generosas abundâncias que uns violadores de sepulturas, com a alcunha de cirurgiões plásticos, vos oferecem ao olhinho guloso? Não comem carne mas podem comer lábios da grossura de bifes do lombo e transformar as caras das mulheres em tenebrosas máscaras de Carnaval. Para isso já há dinheiro, não é? E vocês a queixarem-se sem vergonha, e vocês cartazes, cortejos, berros.
Proíbam-se os lamentos injustos. Não se vendem livros? Mentira. O senhor Rodrigo dos Santos vende e, enquanto vender, o nível da nossa cultura ultrapassa, sem dificuldade, a Academia Francesa. Que queremos? Temos peitos, lábios, literatura e os ministros e os ex-ministros a tomarem conta disto.
Sinceramente, sejamos justos, a que mais se pode aspirar? O resto são coisas insignificantes: desemprego, preços a dispararem, não haver com que pagar ao médico e à farmácia, ninharias. Como é que ainda sobram criaturas com a desfaçatez de protestarem? Da mesma forma que os processos importantes em tribunal a indignação há-de, fatalmente, de prescrever. E, magrinhos, magrinhos mas com peitos de litro e beijando-nos um aos outros com os bifes das bocas seremos, como é nossa obrigação, felizes.
António Lobo Antunes
Adenda: 01-09-2021
A 1 de Setembro de 1942 nasceu António Lobo Antunes. O escritor português celebra hoje 79 anos.
Não procurei a genuinidade, mas mesmo que não seja dele, está bom. O muito bom seria no tocar/chamar mais identidades (tantas!), que a propósito "tinham ficado bem"!
ResponderEliminarcomo seguidor e apreciador (para não dizer fã) das crónicas do António Lobo Antunes devo dizer, independentemente de me identificar com os traços gerais do texto, que esta não me causa grande impressão (do ponto de vista literário e emocional)
ResponderEliminare acho a referência ao José Rodrigues dos Santos, no contexto duma crónica que trata de supostos criminosos ou homens de má fé, profundamente injusta
É só uma crítica ao povo que prefere o entretenimento ao invés da cultura... (Na minha opinião deve haver um equilíbrio entre os dois e a verdade é que o povo, generalizando, já não se interessa pelo saber.)
EliminarTambém concordo. O talento literário de JRS, não era para aqui chamado... dores de coto
EliminarMuito bom. Excelente! Assim dá gosto ler um comentário por aqui. Pena é que a generalidade dos comentários seja tão superficial, tão mal escrita, tão sem conteúdo que acaba por nos desmotivar a ler o que quer que seja por aqui. Mas, enfim, isto é uma tribuna aberta e qualquer um acha que esta é a sua oportunidade de dar nas vistas. Entristece-me, de facto, a imagem que a maioria das pessoas deixa por aqui. Os meus parabéns a este senhor "Gnomo" pela sua excelente análise.
EliminarO problema mais grave é o de um Portugal sempre de joelhos sempre pronto a ajoelhar. Boa noite Portugal!
ResponderEliminarAntónio Justo
Fantástico; adorei.
ResponderEliminarBRILHANTE!!!!! os que se insurgem contra este texto são os que comem da gamela!
ResponderEliminarApelidam de democracia uma ditadura mal disfarçada.(...pelo menos económica) Democracia é quando mando eu, ditadura é quando mandas tu - assim tem sido! Vivemos numa mediocracia ao sabor do poder económica e obvianente em oligarquia. E falam em (poder popular?) se os partidos nao convidarem uns certos senhores para deputados - como terão eles acesso? Como independentes ?? Muita coisa está mal, mas o pior é que não há interesse em mudar... Vejam só; porque é que um país pode endividar gerações futuras?? Alteraram e limitaram o endividamento das câmaras municipais (embora 16 nao cumprissem) e não alteram o resto? Abaixo o discurso da crise, acima os discursos/ações que dêem confianca a um heróico povo que é e tem sido O PORTUGUÊS.!!
ResponderEliminar... que maldade. Que maldade. Ele escreve sobre o quê? Será de nós? Certamente que é de nós. Porque todos nós somos aqui retratados. E que bem. E que bem. E rimo-nos da ironia. Que bom. Que bem se está em Portugal. Pena é termos estes portugueses que nos governam porque nós os irónicos deixamos.
ResponderEliminarExcelente ... A ironia em voz alta ! disse tudo e bem a injustiça que temos em Portugal ...
EliminarObrigado pelo seu grande talento ser Portugues .:):)
Simplesmente brilhante...!!!
ResponderEliminareu amo este homem...para mim o Nobel era dele há muito tempo, mas...
ResponderEliminarSimplesmente fantástico ..... mas o povão na sua maioria não leu nem vai ler isto . Isto precisa ser dito nas televisões, no horário nobre, sem medos e com a realeza aqui demonstrada .... Esta corja de políticos e nomes sonantes , não merecem outra coisa, para mim e contrariando a minha fé católica .... só Deus tem o direito de levar a vida ....eu aniquilava-os a todos para servir de exemplo, mesmo em plena Democracia, ...dois ou três atentados levando-os a eles e á família o problema ficaria resolvido ....
ResponderEliminarUm enorme e irónico hino à realidade portuguesa que devia ser meditado e transcrito como manifesto para milhões de infelizes lusitanos.
ResponderEliminarPassei grande parte da minha vida, tentando chegar ao fim de muitas das suas obras. Por vezes desistia, pensava somos dois saltitões de pensamentos controversos, isto é demais para alguém com um QI normal, mas passados tempos lá recomeçava, recuando uns quantos capítulos para me recontar na história.
ResponderEliminarCom a crise retomei a minha veia esquerdista e a tomada de posição de Lobo Antunes, levou que fosse espreitando de esguelha algumas das suas crónicas e arrumasse de vez as obras. Hoje li e não tive que reler, nem uma frase, mas fiquei pensando: Como podemos ser um povo tão burro, mesmo burro de jumento, com as quatro patas, orelhas e tudo, mas sem ofensa para os ditos irracionais.