Moita Flores: «A seca é o pré-anuncio da fome»
A FOME:
Era puto e aprendi com os mais velhos a ler os sinais do tempo. O boletim meteorológico ainda não era uma ferramenta tão precisa quanto nos dias de hoje. Na herdade onde vivia, ao por do sol, os homens saíam das casas e observavam o ocaso procurando descortinar nuvens, ou sinais delas, na linha do horizonte. Noutras ocasiões espreitavam a lua à espera que à sua volta houvesse um círculo que anunciava maior humidade e a chegada da chuva. E passavam-se os dias sem sinais de água, a terra cada vez mais ressequida, gelada, e tardava o pasto para alimentar rebanhos e manadas.
A cada dia que passava, mirravam os rostos, e temiam-se as piores profecias quase segredadas num murmúrio de aflição.
- Este ano vai ser de fome!
Era contra o fantasma da fome que a vizinha Bárbara fazia mesinhas e rezava aos seus santos da chuva e que o velho Inácio soprava no búzio, soltando um som rouco, estranho, vindo do outro mundo para encaminhar a chuva até ele.
A seca é o pré-anuncio da fome. O arauto do sofrimento. O proclamador da pobreza. A previsão que os campos não darão frutos, que o gado vai esmorecer de fome e água, que o trabalho vai escassear, que mais bocas ficarão com menos pão.
A seca é coisa ruim.
A fome é, ainda, mais ruim.
Hoje, tantos anos depois, compreendo melhor o desespero de quem acorria aos terços, às missas e, até, às procissões de fé, suplicando ao Divino que a orla do horizonte se pintasse de negro e a lua mostrasse um círculo bem vincado.
E os rios e as ribeiras secavam. Não era necessário barco para cruzar as margens. Tudo morria antes de ter nascido. E o Ti' Freitas distribuía pelos cães coleira com pregos que evitavam serem massacrados pelos lobos esfaimados. E os galinheiros cercados por arame que espantasse as raposas. Porque, nestes anos de secura, a fome instalava-se nas casas e uivava pelos campos.
A Fome é o fantasma terrível que paira em todos as secas. E não há volta a dar ao flagelo. Apenas esperar. Esperar que do horizonte cheguem nuvens negras, prenhas de chuva, para saciar a terra e fazer cantarolar os riachos. Para que, deste modo, chegue o tempo das flores. Dos campos pintados de papoilas, de malmequeres e de searas.
As flores! É triste a vida sem flores.
Que a seca não as mate antes de poderem florir.
Moita Flores
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